Tragédia que dura décadas, o genocídio indígena no Mato Grosso do Sul segue com a conivência de todas as instâncias de governo. O povo guarani kaiowá conta com apoio dos companheiros para continuar resistindo por suas terras, mesmo massacrados pela ganância e crueldade de fazendeiros
A liderança indígena guarani kaiowá Valdelice Verón, trouxe a São Paulo um forte relato sobre a situação do seu povo em Mato Grosso do Sul, em evento realizado semana passada, na PUC.
Antes mesmo de começarem as falas, o público teve um momento de emoção no auditório da universidade: na mesa foram colados mais de 20 papéis com nomes de lideranças indígenas assassinadas nos últimos 30 anos, a grande maioria pessoas próximas de Valdelice, como seu pai Marco Verón. Em certo momento ela relatou como se deu a morte de algumas dessas pessoas, cujos assassinos até hoje seguem impunes.
Como Valdelice diz, o governo separou os povos indígenas do Mato Grosso do Sul para dividir os povos. Ela classifica as reservas indígenas de “chiqueiros”: “Para mim são áreas de abate, áreas de confinamento, de morte”, diz ela, que acrescenta que dentro da reserva não conseguem respirar, não conquistam autonomia nem mesmo de dar a educação indígena, tampouco há possibilidade de sobreviver dos recursos naturais.
Ela lembra a retomada da luta pelas terras indígenas tradicionais, feita com muita luta, reorganizando os povos. Porém, a luta traz consigo grandes tragédias. “É uma tristeza muito grande porque toda semana, todo dia morre jovem, criança, mulheres. Voltando a nosso tekoha a gente volta a tomar nossa terra. A gente encontra encontra indústria do etanol, cana, água podre, mesmo assim a gente retoma porque lá está nossa história, e nossa história não vai morrer, porque a gente tem uma memória muito forte que passa de pai pra filho, de filho pra neto.
Sobre as histórias que ela tem a contar, Valdelice diz que é a história dos líderes mortos, mas não para chorar, e sim levantar e seguir em frente.
Valdelice citou como se deu algumas das mortes nos conflitos de terra no estado, como nos anos 1970, como disse a ela seu pai, quando jagunços e outras pessoas queimaram sua tia, junto com os filhos, em uma casa grande construída pelos indígenas. Estas outras pessoas que o pai se referia vestiam blusão verde e sapatos grandes pretos (seriam militares?).
Valdelice mostra os nomes dos companheiros indígenas assassinados
Valdelice contou sobre a morte dos irmãos José Verón e Sérgio Verón, em que a versão oficial é de morte por acidente. Anos atrás, um trator passou pelas terras onde eles estavam enterrados, arrancando de lá seus corpos, e até hoje os indígenas não sabem onde estão os corpos deles e de outros familiares que estavam enterrados neste cemitério. “Mesmo assim voltamos para a terra”, diz.
A resistência e força de Valdelice foram ficando ainda mais explícitos no encontro: “Não adianta falar que compraram arma, que vão matar. A gente vai morrer, mas a gente vai retomar nossa terra. Amanhã, se eu não estiver mais, eu sei que minhas filhas vão continuar a luta”. Sobre a resistência, ela acrescentou: “Nós temos coragem para sobreviver. Aquele pedacinho de terra tem história, é sagrado, lá que a gente começa a se reorganizar, a se reestruturar, é lá que a gente começa a ter autonomia”.
Ela não demonstra medo em falar sobre as ameaças. “As pessoas se dizem civilizadas, como essas pessoas que mandaram recado pra nós, falando que já compraram armas no Paraguai pra matar nós. Esse tipo de civilização eu não quero. Quero diálogo, conversar”.
“Esses juízes deviam entender um pouco de nossa história, porque quando eles assinam uma liminar, assinam nossa sentença de morte, porque são crianças que vão morrer, mulherer, idosos, professores. Muita liderança é marcada pra morrer, a segurança privada em Dourados fez lista pra matar”.
Valdelice conta como todos podem ajudar: “Acredito que vocês que estão aqui são companheiros, são amigos – comecem de dentro de casa falando pros seus filhos que o povo indígena guarani kaiowá são seres humanos também”.
Ao final, depois de ser aplaudida de pé por todos os presentes, Valdelice ainda narrou mais mortes e violências praticadas contra os indígenas, a mando dos fazendeiros, incluindo um episódio ocorrido contra sua filha. “O que aconteceu com a minha filha não virou inquérito. Não tenho esperança na Justiça. Vamos recorrer à Funai, e lá temos filhos de fazendeiros que passaram no concurso, não temos onde pedir socorro”, diz ela, que afirma ainda: “A gente sabe que vai ser genocídio e mais genocídio”.
P.S.: Como citou Valdelice e Sassá Tupinambá, a última assembleia Guarani e Kaiowá Aty Guasu divulgou nota alertando sobre a situação de ameaça de extermínio em que vivem, e que não vão abrir mão da resistência. A nota se encerra dizendo o seguinte:
“Sim, temos somente nossos cantos e rezas sagradas mbaraka e takua para buscar e gerar a paz verdadeira à vida humana. Neste sentido, nós vamos e queremos ser morto coletivamente cantando e rezando pelos pistoleiros das fazendas. Esta é nossa posição definitiva diante da ameaça de morte coletiva/genocídio/etnocídio anunciada publicamente pelos fazendeiros da região de faixa de fronteira Brasil/Paraguai.”
(Nota completa pode ser acessada aqui)
Interessados em colaborarem com a causa guarani kaiowá podem acessar o blog do Comitê Internacional de Solidariedade ao Povo Guarani e Kaiowá: http://solidariedadeguaranikaiowa.wordpress.com/
Mais informações sobre as retomadas indígenas no http://uniaocampocidadeefloresta.wordpress.com/
Vídeo – Expedição Marco Verón – a luta dos guarani kaiowás no Mato Grosso do Sul