O atendimento estatal à saúde indígena parece que já nasceu moribundo, e a cada instante uma parte do corpo deixa de funcionar. Tempos atrás, ao perguntar sobre a situação da saúde em uma aldeia, ouvi a seguinte brincadeira “A saúde tá boa… pra quem tem”. Essa foi pra mim uma frase simples e marcante, pois conseguiu resumir para mim de forma irônica: não podemos depender de médico, enfermeiro, dentista, transporte de emergência, assim, o jeito é não ficar doente. De lá pra cá só tenho visto a crescente omissão do poder público. O jogo de empurra durante o ano de 2011 entre Funasa (Fundação Nacional da Saúde) e Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) só fez com que esta ação moribunda terminasse realmente de definhar.
A Funasa durante mais de dez anos foi usada e abusada por uns tantos esquemas de corrupção como quase todos os setores da saúde do país. O próprio modelo de gestão já dava desde o início toda a abertura para que isto acontecesse, espirrando o dinheiro da saúde indígena nos municípios e no terceiro setor sem o devido controle público. Os protestos das comunidades indígenas foram constantes, mesmo com as seguidas investidas dos envolvidos nos esquemas políticos no sentido da cooptação de lideranças, no que muitas vezes fracassaram. Tudo isto fez com que este serviço básico afundasse ainda mais e a relação com as comunidades fosse cada vez mais desgastada. Foram mais de dez anos sem que se tenha visto um programa sequer de nível nacional atendendo às reivindicações das comunidades para a valorização da medicina tradicional indígena, que sequer era respeitada, ou para o combate à dependência química, principalmente do álcool, nem houve qualquer programa em nível nacional para a promoção de sistemas de saneamento adequados à realidade indígena e rural. Enfim, elementos básicos para se vislumbrar um atendimento à saúde diferenciado. A Funasa, com o corpo de funcionários afogado na burocracia e equipes de saúde terceirizadas, muitas vezes se resumiu a repassar verbas nem sempre utilizadas de forma correta e a disponibilizar veículos e motoristas para levar os indígenas para serem atendidos na cidade pelo SUS, no que sempre houve muita inconstância. Só nos últimos cinco anos em que a saúde indígena esteve sob responsabilidade da Funasa foram desviados mais de meio bilhão de reais.
Passamos o ano de 2010 com a perspectiva de que a ação de saúde indígena iria ser transferida da Funasa para a nova Secretaria de Saúde Indígena a ser criada. Em 2011 a transferência da ação de saúde indígena da Funasa para a Sesai foi mais de uma vez protelada, e muitas vezes não se sabia a quem recorrer, se à Funasa, que alegava estar encerrando suas ações de saúde indígena, ou à Sesai, que alegava estar ainda em processo de estruturação e por este motivo ainda não havia assumido a ação.
Recapitulando com maiores detalhes: durante o ano de 2011, houveram inúmeros casos de falta de medicamentos, dificuldade das equipes de saúde em se deslocar para as aldeias, inacessibilidade dos indígenas ao serviço de transporte dos enfermos, principalmente em casos de urgência, omissão no controle da qualidade da água nos sistemas de abastecimento, falta de água causada por omissão na manutenção e reposição de materiais, morosidade ou mesmo inoperância na instalação e manutenção de sistemas de saneamento.
Um caso emblemático é o da aldeia Tangará, em Itanhaém – SP, onde entre 2010 e 2011 vieram a óbito quatro crianças. Em uma delas foi feita biópsia e foi constatado forte indício de que a anemia profunda que sofria foi causada por contaminação da água e levou à morte da criança. Uma servidora pública que vinha acompanhando com preocupação a situação desta comunidade e pretendia investigar inclusive a qualidade da água foi vetada por pessoas da Funasa de prosseguir com suas visitas à aldeia.
Entretanto, uma dúvida: Foi a crise permanente da Funasa na ação de saúde indígena que motivou a criação da Secretaria de Saúde Indígena – SESAI? Será que devemos ser otimistas em relação às decisões dos mesmos governantes que tantas provas nos deram do amor que têm pelo povo? Hoje, em 2012, a responsabilidade da ação de saúde indígena está toda na Sesai, porém, simplesmente iniciamos o ano sem qualquer ação na área da saúde: as equipes não têm condições de serem transportadas, pois os carros estão parados; os agentes de saúde indígena de São Paulo estão sem receber seus honorários, situação que possivelmente deve estar ocorrendo também em outros Estados; além disto os problemas de 2011 persistem.
Apesar de haver se passado um ano da criação da Sesai, será que não houve tempo hábil para a transição? Será a falta de contratos, licitações para combustível, manutenção de veículos? Não existe uma série de argumentos jurídicos e administrativos que tratam da emergência no atendimento à saúde com os quais se dispensam de licitação até mesmo ambulâncias e equipamentos caríssimos, frequentemente utilizados para o desvio de verbas? Por outro lado, vemos argumentos referentes às mudanças na gestão da saúde indígena, no sentido da otimização dos recursos públicos. Pergunto: Será ótimo para quem? Otimizar para reduzir as verbas realmente aplicadas na ponta e continuar a alimentar a máquina burocrática e o desvio? Otimizar o clientelismo político?
Toda minha ingenuidade ainda me permite acreditar que haveremos de ver uma verdadeira reestruturação do atendimento público à saúde indígena, onde os altos recursos que hoje são sugados pela máquina e pela corrupção sejam investidos realmente em saúde, e na qual haja o apoio à medicina tradicional, à fitoterapia e às formas indígenas próprias de curar enfermidades de ordem mental, espiritual, que venham a contribuir até mesmo no tratamento de casos como a dependência química dentre outros problemas advindos do contato com a sociedade não-indígena. Para que isto aconteça estou certo da necessidade primordial da organização das comunidades indígenas neste sentido e dos trabalhadores que com elas atuam, pois isto não será realizado por nenhum governante. Pretendo com estas palavras não apenas a denúncia, que por si não tem a capacidade de transformar a realidade, mas conclamar a sociedade, indígena ou não, que conscientes do direito fundamental à saúde, viremos o jogo a nosso favor por meio da organização, da prática e da luta.
Jaguanharõ