Do feminismo nosso de todo dia.

“Maquilagem, cabelo, roupa, corpo e homens! Saiba tudo o que uma mulher precisa aqui! Responda SIM e assine por R$0,35/dia os segredos que toda mulher tem que saber”

Fonte: http://outramento.blogspot.com.br/2012/12/do-feminismo-nosso-de-todo-dia.html

Recebi essa mensagem no celular essa semana, e ficou ecoando na minha cabeça o tempo todo. Em um primeiro momento, o fato de “maquilagem, cabelo, roupa e corpo” serem colocados no mesmo “conjunto” de “homem”. Como se tratasse de um mesmo grau de interesse e de uma mesma necessidade de atenção a forma como escolhemos um penteado ou nos relacionamos com outro ser humano. A questão é essa: não se trata de relações humanas. É uma coisa, os homens. Precisamos saber o que eles afinal pensam e querem, e como fazer para ganhá-los. Dos bons, evidentemente. E claro, a melhor opção é adquirindo um serviço de celular.

Sempre escrevo insistentemente sobre como reproduzimos nas relações humanas a forma que nos relacionamos com as coisas. Insisto porque é uma lógica que estamos todos sujeitos a reproduzir sem perceber. E é muito triste esse grau de previsibilidade e clichê que nos tornamos. Repetimos e repetimos insistentemente, tentando reproduzir da forma mais correta que a “receita” prescreve a forma de amar outra pessoa, as outras pessoas. Mesmo que esse modelo nos custe colocar de lado nossos desejos e vontades.  Não bastasse nos ordenar: trabalhas, pague, compre… também nos orientam: ame aquele, seja desse jeito, sirva a teu esposo dessa forma, reproduza filhos sadios.

Para além dessa relação reificada, existe essa redução do que se trata ser mulher. É tão cristalizado e naturalizado que penso quantas mulheres questionaram ao receber um SMS. Eu me senti, ao ler, extremamente reduzida. Como se fosse isso que a mulher deveria se interessar: estética e homens. Estética para conseguir atrair os homens. Parece bobeira, parece papo chato de feminista como gostam de falar por aí mas não é! Normalmente fico brava e me irrito com essas mensagens – não só do celular, mas cenas da televisão que nos reduzem dessa forma: Seja burra, mas seja gostosa. Seja decidida, porque os homens gostam, mas não tão decidida, porque eles assustam. Seja sexy, mas não seja vulgar – pode dificultar arrumar um marido – coisa mais fácil é ser mal falada.

Dessa vez não fiquei brava, mas fiquei triste. A cena que me veio na cabeça era como uma criança gordinha com roupinha de ginástica, tentando impressionar os pais com coreografias mirabolantes e mal sucedidas, que dão risada tentando dizer: “não precisa disso, queridinha”. De repente eu era essa criança, em meio a tantos livros, buscando com tanto compromisso uma formação humana com o objetivo de contribuir da melhor forma pra uma transformação social… e a sociedade me manda um SMS dizendo que tudo que eu preciso é de uma boa sombra e um bom decote. Desista. Esse mundo dos pensantes não é pra ti, lindinha.

Talvez um homem não tenha a dimensão disso, do que significa ouvir quase a vida toda que sua inteligência é bônus. Ou, pior, como algo que atrapalha. Melhor que seja burra mesmo, mas bonita. Bem cuidada. Belos dentes. Contanto que o conjunto de roupas e maquilagem estejam de acordo, tanto faz o que falaremos. Lembro de um livro, sobre Simone de Beauvoir e Sartre no Brasil, que comentava de notícias do jornal, que quase não falavam dela, apontando os holofotes sempre para Sartre. Muitas vezes, ela era isso: a companheira de Sartre. O cúmulo do absurdo foi em uma palestra dela os jornalistas comentarem sobre a ausência de Sartre na platéia, pois estava sabe lá onde. A ausência de Sartre era mais interessante que Simone falando.

Nós nos acostumamos (essa palavra dói nos ossos na alma e em tudo) a essa condição. Reduzidas a uma máquina de fazer filhos e refeições para o marido. Com uma calça que ressalta a bunda e um sutiã que valoriza os seios, uma maquilagem que esconde as olheiras de cansaço e qualquer sinal de idade – afinal, temos que nos manter ou aparentar jovens, para não sermos trocadas.

Parece exagero, mas se pararmos para pensar é essa imagem que está de fundo quando nos dão bonecas de presente, quando nos mostram desde pequenas o batonzinho, a bolsinha, o sapato alto. Fogãozinho. Nos ensinam a sentar de perna fechada – “senta igual mocinha“. Se buscarmos entender o que está no nosso imaginário social, o que está pelas televisões, nas notícias de jornal, nas músicas… é isso que está nos dizendo. O tempo todo. E se entendemos a mensagem e questionamos somos as feministas chatas. Não entendemos a brincadeira.

Pois é, eu não entendi a brincadeira, sociedade. Talvez eu tenha perdido a parte engraçada quando um sujeito imaginou que tinha permissão de agarrar a minha bunda no metrô quando eu não tinha nem 18 anos – eu fiquei com vergonha, ao invés de ficar brava. Ele disse que foi sem querer, mas eu e ele – e o resto que viu – sabe que não foi. Talvez era muito nova pra entender a piada quando o zelador do prédio ao lado me chamou de gostosa ao me ver com o uniforme da escola, e eu então fiquei um tempo sem coragem de usar saia. Talvez não tenha entendido a piada quando um “companheiro” me disse que eu não precisava falar muito para convencer os homens a ser militante, basta piscar meus olhinhos verdes. Ou perdeu a graça – tantas brincadeiras depois –  quando eu vi na TV que mulher feia deve agradecer ser estuprada. Não vi graça mesmo ao sentir medo de voltar pra casa pois morava num prédio que outras garotas tinham sido estupradas outras vezes, algo “recorrente naquela região”. Esqueci de rir quando bateram na minha vizinha, pelo fato dela ser mulher, e de seu esposo estar com raiva – que outro lugar para depositar sua raiva, que não em sua mulher, não é mesmo?

A forma de apagar essa mensagem da cabeça é talvez escrever sobre. Denunciar. É o que podemos fazer. Sabemos que nosso grito não tem o alcance das palavras e gestos sufocantes do outro lado, mas vamos tentando. Que chegue em uma, que alcance outra, que questione mais uma. Quem sabe alguns companheiros no caminho se sensibilizem. Até que um dia deixem de nos querer deixar pequenas. Até que nós passemos a aprender que não devemos pedir permissão para sermos grandes do jeito que somos. Até que um dia a opressão comece a perder a graça, e possa, quem sabe, ser superada.